quinta-feira, 21 de abril de 2011

Uma Grande Aventura

INTRODUÇÃO


Michel Pitz era o nome que estava gravado, junto com outros, no monumento ao imigrante alemão inaugurado em 1929, em São Pedro de Alcântara, em comemoração ao centenário da imigração; Miguel Pitz, escreveu Raulino Reitz, em 1963 e, finalmente, em 1995, Aderbal João Philippi [³] registrou Michael Pütz.

Com o desenvolvimento da internet e a digitalização de arquivos na Alemanha, finalmente, puderam ser confirmados o nome - Michael Pütz [¹] - e as suas origens.

Ele foi um agricultor em Oberemmel, Renânia, no oeste da Alemanha, região na época pertencente ao Reino da Prússia.

Emigrou com a família para o Brasil em 1828. Não deixou fotos, desenhos, pinturas ou livros. Nada ficou para mostrar ou contar aos seus descendentes. Nem o local onde foi sepultado, está preservado. O cemitério foi abandonado depois que a capela de Santa Bárbara ruiu.

Michael Pütz foi um homem comum.

A sua vida com a família e o meio em que viveram são aqui registrados.




O HUNSRÜCK

O Hunsrück é uma região montanhosa, de florestas, úmida e de muitas águas, entre o rio Mosela, o Estado do Sarre e o rio Reno, no Estado da Renânia-Palatinado, oeste da Alemanha.

No século I, Mainz - situada no lado esquerdo do Rio Reno e capital do Estado - e áreas adjacentes foram ocupadas pelos romanos que já estavam em Trier desde o ano 16 AC.

No ano de 450, Átila, rei dos hunos, cruzou o rio Reno ao norte de Mainz com, provavelmente, 100.000 guerreiros. Avançando num front de 160 quilômetros, atravessou o Hunsrück para saquear várias vilas no que é hoje a França setentrional.

O nome Hunsrück, segundo estudiosos alemães, pode ter o significado de dorso de cão (Hundsrücken), devido ao formato das montanhas. Segundo outros, o nome origina-se dos hunos (Hunesruck) que ali foram buscar abrigo depois de abandonados por Átila. Os reis franceses chamavam a região de Pagum Hunnorum (povoado dos hunos). Há outras localidades da região que também lembram os hunos, como Hunolstein e Hunnenbrunnen.


TRIER E OBEREMMEL

No sudoeste do Hunsrück localiza-se a cidade de Trier, no lado direito do Rio Mosela, perto da fronteira com a França e Luxemburgo.

Igreja de São Brício - Oberemmel
Trier foi fundada pelos romanos no ano 16 antes de
Cristo como Augusta Treverorum, e é a cidade mais antiga da Alemanha. Como foi residência imperial e a capital do Império Romano do Ocidente no final do século 3º, chegou a ser considerada a segunda Roma.

Oberemmel é um povoado que fica a 14,6 quilômetros ao sul de Trier. Foi fundado em 11 de fevereiro de 893. Tem atualmente 1.400 habitantes, e uma área de 1.371 hectares, dos quais 185 são vinhedos e 636 florestas. A população é católica e a igreja dedicada a São Brício.




OS CAMPONESES ALEMÃES NO SÉCULO XIX

No século XIX, die Bauern (os camponeses) do oeste da atual Alemanha, ainda sofriam a influência do regime feudal.

Os pequenos lavradores constituíam uma maioria considerável em toda a nação alemã. Segundo Friedrich Engels, dentro dessa classe, distinguiam-se as seguintes facções:

1 - Os lavradores mais ricos, chamados de Gross e Mittel-Bauern (grandes e médios camponeses), proprietários de áreas mais ou menos extensas e dirigindo cada um deles os serviços de vários trabalhadores agrícolas.

2 – Os pequenos camponeses livres, que predominavam na região do Reno. A sua propriedade estava geralmente hipotecada, a tal ponto e em condições tão onerosas que não era o camponês, mas o agiota que tinha emprestado o dinheiro, o real proprietário da terra.

3 – Os rendeiros feudais, que não podiam ser facilmente expulsos dos seus arrendamentos, mas que tinham de pagar uma renda perpétua ou de realizar em perpetuidade certa quantidade de trabalho em favor do senhor do feudo.

4 - Os trabalhadores de grandes empreendimentos agrícolas, que viviam e morriam pobres, mal alimentados e escravos dos seus patrões.

No Hunsrück o minifúndio agrário, a terra exaurida e a agricultura sem tecnologia levaram os pequenos agricultores a um quadro de fome e de pobreza.

Nestas condições, a promessa de um eldorado no sul do Brasil, com passagem, terra, assistência e primeiras provisões gratuitas, além de subsídios depois de instalados, era uma proposta irrecusável.


A EMIGRAÇÃO PARA O BRASIL

Michael Pütz, sênior e Anna Maria Kirchen nasceram e casaram-se em Oberemmel. Ele nasceu em 20 de dezembro de 1781 e ela em 03 de janeiro de 1785. Casaram-se em 1814. Com outras famílias da região, em meados do ano de 1828, emigraram para o Brasil levando os quatro filhos: Johanna com 13, Michael com 9, Franz com 7 e Anna com 4 anos.

Do porto fluvial de Trier navegaram pelo rio Mosela e depois pelo rio Reno, provavelmente até Düsseldorf, numa distância de aproximadamente 230 quilômetros. De lá, por terra, percorreram mais de 300 quilômetros até Bremen, às margens do Rio Weser, no norte da Alemanha. Em Bremen embarcaram para o Rio de Janeiro.


Brigue
As viagens de navio, no início do século XIX, não eram das mais agradáveis. Neste caso, aproximadamente, três meses em alto mar. Enjôo, vômito, disenteria, alimentação deficiente, falta de condições de higiene, doenças e tempestades. O desconforto psicológico e material e a necessidade de superar a lenta passagem do tempo eram amenizados pela assistência religiosa. Com um Padre ou Pastor a bordo, missas e orações eram realizadas durante toda a viagem.

Chegando ao Brasil, seguiram para a Armação de São Domingos, em Niterói. De lá foram levados a Desterro, hoje Florianópolis - na Ilha de Santa Catarina - no brigue Luiza, aonde chegaram no dia 07 de novembro de 1828. Integravam um grupo de 276 imigrantes.

Ocuparam os galpões que haviam ficado disponíveis com o término da pesca da baleia pelos armadores portugueses na Armação e Fazenda de Santa Anna da Lagoinha, atual Armação do Pântano do Sul, no sudeste da Ilha.

Foram isolados naquela praia remota da ilha, sob a justificativa de que precisavam de cuidados médicos enquanto aguardavam o ingresso na colônia. Ficou a impressão de que eram indesejados.


ARMAÇÃO E FAZENDA DE SANTA ANNA DA LAGOINHA

As armações localizadas no litoral do Brasil foram empreendimentos coloniais dedicados à pesca da baleia e ao beneficiamento das partes econômicas deste cetáceo. Além da produção de óleo para a iluminação urbana, outras partes eram aproveitadas, como a carne, a gordura e até as barbatanas.

A Armação e Fazenda de Santa Anna da Lagoinha era composta pela capela, casa-grande (três salas, quatorze quartos, três corredores, varanda e cozinha), casa dos tanques (capacidade para 1697,50 m³ de óleo), engenho de azeite, armazém, senzalas, companhas dos baleeiros (10 casas com um armazém para lanchas), engenho de farinha e um sítio com sete mil pés de café sombreado que se estendia ao longo da Lagoa do Peri (5,2 km² de água doce com até 11 metros de profundidade).

Embora as companhias portuguesas tivessem encerrado a caça à baleia, a armação não estava desocupada quando chegaram os imigrantes alemães.

Eles ali permaneceram entre novembro de 1828 e outubro de 1829 e dividiram as instalações da Armação com militares, provavelmente, tropas imperiais que ali estavam acantonadas em função do término da guerra Cisplatina.

Em completa ociosidade, houve até um clima de revolta, o que ensejou uma representação de 25 deles ao Presidente da Província, datada de 25 de janeiro de 1829, solicitando trabalho para passar o tempo enquanto não eram levados para a colônia.

Praia do Campeche, Armação e Lagoa do Peri
Enquanto aguardavam alguma providência, dedicavam-se a explorar as belezas do lugar. Caminhadas longas (Wandern) tão ao gosto dos alemães, podiam levar a núcleos coloniais açorianos de fácil acesso como a Lagoa da Conceição e o Ribeirão da Ilha. Sabe-se, entretanto, que os alemães não eram muito bem vistos pelos açorianos que os chamavam de galegos. [¹.¹]

Podiam acompanhar os trabalhos do sítio como o plantio da mandioca, a fabricação da farinha, a colheita e a torrefação do café. E entre os meses de julho e novembro, agora em pequeno número, apreciar a chegada da baleia-franca-austral. [¹.²] Existia ainda a capela, onde podiam fazer as suas orações.

Apesar de tudo, este período de “férias” forçadas, deve ter marcado a vida de todos eles.


A LENDA DO PITZ QUE VEIO DENTRO DE UM BARRIL

Diz a tradição familiar que o Pitz era tão pequeno que veio de navio da Alemanha, dentro de um barril. Era motivo de chacota. Parecia apenas uma lenda, mas há algo de verdadeiro nesta história. Tudo indica que um menor de idade viajava como clandestino e foi adotado pela família Pütz. Ele não viajava dentro do barril porque era pequeno, mas para esconder-se. Teria, possivelmente, entre 14 e 16 anos e passaria a ser o filho mais velho da família Pütz. Seu nome era Jakob Bornhausen.[²]

Afirma Aderbal João Philippi:

[...] Houve alguns casos de passageiros clandestinos, quase sempre órfãos, que ao serem descobertos, foram amparados e garantidos por outras famílias, como contam as tradições familiares. [...](PHILIPPI, 1995, p. 19).

Ainda segundo o mesmo autor, não há indicação do navio que transportou Jakob Bornhausen até Desterro e nem a data em que entrou na Colônia São Pedro de Alcântara.[³]


COLÔNIA SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA

Em 25 de outubro de 1828, um Aviso Imperial mandava que o Presidente da Província de Santa Catarina estabelecesse os colonos alemães entre a Capital e a Vila de Lajes. O brigue Luiza chegou no dia 07 de novembro.

Este Aviso foi levado de navio, pois a ligação telegráfica com Desterro somente aconteceu em 1866. O Presidente da Província provavelmente recebeu o documento junto com o primeiro grupo de imigrantes.

Ficou decidido que estes seriam instalados nas margens esquerda e direita do Caminho das Tropas para Lajes,[4] a partir de 30 quilômetros a oeste da vila de São José da Terra Firme. Cada lote teria entre 110 e 220 metros de frente - segundo o número de pessoas da família - e entre 1.650 e 1.760 metros de fundos.

A partir de 09 de julho de 1829 começou a ser dada a posse aos proprietários. No final desse ano, foram entregues os últimos lotes aos imigrantes do Brigue Luiza. Parte deles na região do Morro do Gato [5] e alto Louro [6], ao norte do Caminho das Tropas para Lajes.

A Colônia foi denominada São Pedro de Alcântara em homenagem à família imperial.

No início de 1830 foram abertas picadas e colocados marcos divisórios nas propriedades da região do Morro do Gato e alto Louro. Estes marcos eram pedras comuns de tamanho médio e formato alongado, plantados nas extremas com a presença dos proprietários.

Em 1835 foi iniciada a construção da capela dedicada a Santa Bárbara. Ao lado foi criado o cemitério, hoje inexistente. Lá provavelmente foram enterrados Michael Pütz, sênior e a esposa Anna Maria Kirchen.

A capela ruiu em 1915 e no local foi erguida uma ermida com a cruz de ferro do altar principal da capela.Esta cruz está fixa numa pedra em forma de losango, com aproximadamente 1,5 metro de altura, e que foi encontrada numa propriedade próxima.

Anualmente, no dia 4 de dezembro, celebrava-se ali a festa de Santa Bárbara até o seu culto ser suprimido pela Igreja Católica em 1969.[7]

Na Alemanha, Santa Bárbara era a padroeira dos habitantes das regiões montanhosas e dos mineiros. Sua devoção também estava ligada às festividades do Natal, às safras, ao namoro e ao casamento.

Diz a tradição que ela protege de morte trágica, tempestades, chuvas, raios, trovões e explosões.


O LOTE DA FAMÍLIA

Mesmo tendo chegado primeiro a Desterro, os imigrantes do brigue Luiza foram os últimos a tomar posse nos lotes da Colônia.

Da Armação da Lagoinha à Praia Comprida, em São José - cerca de 24 quilômetros - foram de barco a vela. De lá até o Morro de São João (depois Morro do Gato) - cerca de 35 quilômetros - foram a pé, seguindo o Caminho das Tropas para Lajes. Os pertences de cada família eram transportados em burros de carga. Este caminho lamacento avançava pela floresta virgem.

Quando chegaram, as melhores áreas já haviam sito distribuídas. Couberam a eles as pirambeiras do Morro do Gato e arredores do alto Louro.

O lote da família Pütz era uma porção de floresta tão íngreme e acidentada, que certamente foram usadas cordas e cipós para deslocar-se até onde seria construída a moradia. Por isto, posteriormente, a zorra (pedaço de tronco bifurcado, arrastado por bois) foi bastante utilizada para o transporte das colheitas.

Com o tempo, Michael foi percebendo que a propriedade que parecia ter sido um castigo de Deus, também tinha as Suas bênçãos. No alto Louro o clima era mais quente e a terra mais fértil. A cana-de-açúcar ficava mais doce e produzia mais açúcar. No inverno não geava forte e, com isto as plantações de banana e de café sombreado não eram afetadas.

A tradição oral nos legou uma imagem alegre e otimista da família Pütz. Tinham fama de esquentados, mas isto não impediu uma convivência harmoniosa com os seus vizinhos. Semear farinha fazia parte do anedotário dos primeiros imigrantes.


OS FILHOS

Johanna casou-se com Jakob Bornhausen, provavelmente, em 1833. O primeiro registro público dele aconteceu quando com a sua mulher, recebeu em 1847, a Sorte número 54 na Colônia Santa Isabel. Já tinham quatro filhos. A filha mais velha, Luisa ou Isabel, tinha 13 anos. Tudo indica que eles estavam morando com a família Pütz.

Michael ficou com a propriedade do pai e casou-se, em primeiras núpcias, em 1845, com Elisabetha Schmitt e, em segundas núpcias em 1857, com Margarida Schmitz. A propriedade até hoje continua pertencendo à família.

Franz casou-se com Katharina Eberhardt e, em 1847, recebeu a Sorte n. 56, em Colônia Santa Isabel.

Anna casou-se com Wilhelm Johann Karl Friedrich Kahl e foram morar na Colônia Angelina.


A VIDA EM FAMÍLIA

Ter muitos filhos era motivo de orgulho para os pais e também significava mais mão-de-obra para o desenvolvimento da propriedade.

O pai era o chefe da família, cujo poder era exercido com base na hierarquia e na disciplina. As suas determinações eram rígidas e orientadas pela tradição, costumes e normas morais ditadas pela religião. A mulher era-lhe subordinada e a idade determinava a hierarquia entre os filhos e as pessoas em geral.

A mulher, tradicionalmente, acompanhava o marido nos serviços de preparação do terreno, plantio, capina, colheita e na fabricação do açúcar mascavo e da farinha de mandioca. Na capina da cana-de-açúcar, mesmo no alto verão, protegia-se do corte das folhas, usando chapéu, camisa de manga longa e calça comprida por debaixo do vestido. As atividades domésticas, de certa forma ficavam em segundo plano ou eram executadas em dias de chuva.

Os filhos desde a mais tenra idade auxiliavam os pais nas tarefas caseiras, no engenho e nas plantações.

Em casa, andar descalço era normal. Nas lides da roça e do engenho, só os adultos usavam tamancos de madeira.

No sítio, crianças e adolescentes de ambos os sexos vestiam somente uma peça inteira (tipo camisola) sobre o corpo, confeccionada com um tecido de algodão listrado (cinza claro e cinza escuro), chamado riscado ou riscadinho.


AS COMUNICAÇÕES E A VIDA SOCIAL

Não havia estradas e a parte navegável do rio Biguaçu começava a aproximadamente 15 quilômetros de distância. Os deslocamentos e o transporte de mercadorias eram feitos a pé por picadas no meio da floresta. Os produtos eram levados nos ombros, em sacos e em balaios.

O doente era transportado em maca improvisada - geralmente feita de galhos de árvores e folhas de palmeira, amarrados com cipó - numa empreitada que levava um dia de viagem. Colocado dentro de uma canoa era levado a remo ou a vela até o Hospital de Caridade em Desterro.

Os caminhos eram tão lamacentos que para um acontecimento social, fosse missa, batizado ou casamento, iam descalços. A calça e os sapatos eram levados nas mãos e somente colocados depois de lavadas as pernas e os pés, no local ou próximo ao acontecimento.

As missas nas manhãs de domingo, casamentos e batizados eram os encontros sociais por excelência. As novidades eram colocadas em dia e entabulavam-se negócios.

Confinados pela mata e por acidentes geográficos quase intransponíveis, as crianças não tinham acesso à escola. Mesmo se escolas existissem, uma distância de cinco quilômetros poderia ser considerada pequena. Mas para elas andar essa distância a pé, por uma picada no meio da floresta virgem seria uma temeridade.

Somente em 1902 foi criada a Escola Paroquial da Capela do Louro. Os vigários indicavam os professores, que posteriormente eram nomeados pelo bispo e que no início, lecionavam em suas próprias casas.


ANNA

Acordou com o canto dos pássaros. Levantou e abriu a janela. Estava clareando o dia.

No fogão colocou palha seca e três achas de lenha sobre as brasas que haviam ficado da noite anterior. Assoprou com força até as palhas começarem a queimar.

Encheu a chaleira de ferro com água e colocou-a sobre a abertura da chapa.

O café era torrado, em casa, com açúcar grosso e socado no pilão. Para tomá-lo, não era acrescentado açúcar.

Quando a água ferveu, Anna pôs duas colheres de pó de café na cafeteira e sobre ele despejou a água fervente até completar. Não era coado. Tapou a cafeteira.

Ela e as crianças haviam-se adaptado relativamente bem a este novo mundo. Der Michl (o Michael) era muito sério e preocupado. Sentia-se responsável pelos períodos de infortúnio da família. Eles não haviam trazido dinheiro e confiaram nas promessas do governo. Assim que tomaram posse da propriedade e começaram a fazer as primeiras roças souberam que haviam sido cortados os subsídios. Foram dias, semanas e meses muito difíceis.

Os primeiros raios de sol se estenderam sobre a floresta. Este verde intenso entremeado de flores, o cheiro da relva e o canto dos pássaros sob o céu de um forte azul... Quem falou que isto não é o paraíso?

Anna se emocionava com esta beleza selvagem.

Levou o café para a mesa, acompanhado de fatias de pão de milho, Käs (Schmierkäse, queijo branco) e melado de cana. Rezaram e se serviram.

Estava começando um novo dia.

No meio da tarde, os pássaros silenciaram. Uma calmaria estranha tomou conta do lugar. O sol continuava forte, mas de sudeste, avançavam nuvens negras.

Trovoadas em finais de tarde, nessa época do ano eram comuns. A sua provável intensidade podia ser medida pela formação e cor das nuvens. Nuvens compactas e tão negras que chegavam a tons arroxeados lhe davam um aperto no coração.

Uma forte tempestade estava chegando. Anna chamou os filhos. Michael e Jacob não demoraram a chegar da roça.

Escureceu. Raios e trovões, cada vez mais fortes. O vento começou a zunir. Uma rajada mais violenta fez Michael reforçar as trancas da porta e das janelas. Anna correu a pegar uma folha seca de palmeira, benta no Domingo de Ramos. Colocou-a no fogo, invocando Santa Bárbara.

Acompanhando os raios e trovões, começou uma chuva torrencial. Ajoelharam-se a rezar.

Aos poucos, a trovoada passa e finda mais um dia.


MICHAEL

Parou de capinar. Tirou o chapéu, limpou o suor da testa com as costas da mão e olhou para o sol: eram dez e meia. Anna estava ao seu lado, coberta da cabeça aos pés, com a enxada nas mãos, ajudando na retirada de ervas daninhas da roça de cana-de-çúcar.

-Wie warm (que calor) , murmurou para si mesmo.

Olhou para a casinha, lá em baixo. A pequena chaminé expelia fumaça, sinal de que a filha Johanna estava atenta no preparo do almoço. Na panela de ferro, cozinhava um caracu salgado, um pouco de carne e feijão. Com a farinha de mandioca e o feijão faziam o pirão. Uma salada de pepino e agrião completava o almoço.

Michael estava com 50 anos. Há três, no Louro. Este seu mundo, nos usos e costumes, era uma cópia da sua Oberemmel. Falava-se, cantava-se e rezava-se em alemão. Mas não era só. O enigma da floresta tropical - decifra-me ou te devoro! - o sol inclemente e o calor intenso lembravam a distância que separava estes dois mundos. Os barulhos rondando a casa à noite – seriam índios, mãos-peladas, onças? As cobras, aranhas e outros bichos infiltrando-se nas palhas da cobertura.

Uma casa de paredes de pau-a-pique coberta com folhas de palmeira. Estrados de tábuas serradas manualmente, elevados do chão batido, cobertos com colchões de palha de milho e travesseiros de marcela, formavam camas. Um Schrank (armário) rústico para guardar a comida; carnes de animais selvagens salgados e lingüiça de carne de porco, pendurados – defumando – acima do fogão a lenha. Ali, livre da umidade, também ficava guardado o saco de sal.

O forno de barro para assar o pão ficava no lado de fora da casa. A massa do pão de farinha de milho podia ser misturada com cará, inhame ou batata doce.

Pequenas roças de cana de açúcar, milho, mandioca, a horta em volta de casa, uma vaca, algumas galinhas e porcos soltos.

Tinha a segurança de quem possui o mínimo necessário. Os anos de fome haviam passado, lá e cá. A saúde da família era boa.

No rosto queimado pelo sol, os olhos azuis continuam brilhantes:

Alles jedt doch noch god, Gott sei Dank (tudo vai bem graças a Deus ), fala para si mesmo.

Michael estava passando por um período de relativa tranqüilidade. Criou Jakob como um filho e é o seu braço direito. A filha mais velha, Johanna, irá casar-se com ele, mas continuarão morando com a família. Os outros três também haviam crescdio fortes auxiliando-o nas tarefas do sítio.

As safras, mesmo pequenas, haviam sido boas.

Vizinhos haviam partido para outras colônias. Também fora convidado a se mudar. Ele, entretanto, está feliz com a sua propriedade. Aos poucos está decifrando o enigma da floresta e do seu mundo

Ama este chão que, não só dores, mas também alegrias lhe proporcionou.

Desce com Anna e Jakob para o almoço.

Senta-se na cabeceira da mesa e olha para os seus amigos de jornada: Anna, Johanna, Michael, Franz,Änchen (Aninha) e Jakob.

- Lasset uns beten (vamos rezar).

- Im Namen des Vaters und des Sohnes und des Heiligen Geistes. Amen (em nome do Pai, do Filho e de Espírito Santo. Amém).



______
[1] Na Alemanha, há famílias Pütz e Pitz. Integrantes dessas famílias emigraram para diversos países. No Brasil o nome de família Pütz foi registrado como Pitz na freguesia, e depois, vila de São Miguel da Terra Firme, atual município de Biguaçu-SC, onde era feito o registro civil dos habitantes da região do Louro. Pütz, no dialeto, significa fonte de água, nascente.

[1.1] Galego é o nome do habitante da galícia região da Espanha que faz fronteira com Portugal. Por motivos culturais, galego é um nome considerado ofensivo pelos portugueses.



[1.2] A baleia-franca continua a visitar a Ilha de Santa Catarina. De acordo com o jornal Diário Catarinense de Florianópolis-SC, em 28/08/2010, 57 (cinqüenta e sete) baleias-francas são avistadas, próximo à rebentação, entre Laguna e a Ilha de Santa Catarina. 

[2] Patriarca de uma das mais ilustres famílias de Santa Catarina.

[3]PHILIPPI, Aderbal João. São Pedro de Alcântara - A primeira colônia alemã de Santa Catarina. Florianópolis: Ed. Do Autor, 1995, pgs. 19 e 136.

[4]Caminho das Tropas era o nome dado às rotas de ligação utilizadas por tropeiros para conduzir o gado e transportar mercadorias em burros de carga.

[5]Katzenberg (Morro dos Gatos, em alemão).

[6]O nome Louro é originário da árvore do mesmo nome. Aqui a árvore encontrada é o louro-pardo (cordia trichotoma), madeira de lei da melhor qualidade. Os descendentes de alemães ainda hoje chamam a região de Loa. O nome Lorbeer (louro, em alemão), é abreviado para Lor (pronuncia-se Loa). Mas não se surpreenda o visitante se encontrar alguém falando Lua. A região também era chamada de Alto Biguaçu.

[7]Depois do Concílio Vaticano II só é considerado santo aquele cuja existência tenha comprovação ou que não seja acompanhado por lendas estranhas (é o caso de Santa Bárbara). Os que foram excluídos continuam reconhecidos pela Igreja, mas não fazem parte do Calendário Litúrgico. 



REVISÃO

Albio Boeing.

Alessandra Mara Schroeder, graduação em Biblioteconomia, especialização em Gestão da Informação e Inovações Tecnológicas.


AGRADECIMENTO

João Pedro Pitz, pela colaboração e incentivo.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


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