O Cavalo Alado

Reminiscências da Infância


Ofstohn!

- Ofstohn¹! 

Acordei. A lamparina de querosene iluminava o rosto do papa. Estava frio, mas não muito. A mama havia-me dito que eu iria ajudá-lo, de madrugada, a moer cana-de-açúcar no engenho. Deveriam ser três e meia da manhã. Eu era o filho mais velho. Com uns cinco anos de idade, o convite me dava uma sensação de importância. Iria ajudar o meu pai. Impensável reclamar ou deixar de ir. 

Mamãe já estava na cozinha fazendo o café. Depois de comer uma schmia² e tomar uma xícara de café, papai de tamanco e eu descalço, fomos para o engenho que ficava a uns cem metros de distância. Não havia lua, mas o céu estava claro e pontilhado de estrelas.

Papai colocou a lamparina num local adequado e os molhos amarrados com cipó próximos à moenda. 


A água vinha do açude através de uma vala,  entrava numa calha de madeira que a levava por cima da roda d'água. Um sarrafo preso na calha  servia de comando interno para desviar a água e jogá-la nas caixas de captação da roda. Isso feito, a moenda de ferro, ligada a uma série de engrenagens que partiam da roda 'água, começou a mover-se. Não esperei pela ordem do papa.  Assim que ela mostrou força e velocidade, fiquei na frente da moenda e coloquei a primeira cana. Por eu ser de baixa estatura o esguicho da garapa atingiu-me a cabeça e o rosto. Limpei os olhos com a mão esquerda e com a direita continuei empurrando a cana. Depois de moída, coloquei outra. Uma de cada vez, com calma. Der papa, em silêncio, observou e depois foi colocar lenha e acender o fogo sob o tacho de cobre.


A minha tarefa era encher o tacho com a garapa da cana. Der papa continuava com os procedimentos para fazer o melado e o açúcar.
_________
¹ Levantar! 
² Uma fatia de pão de farinha de milho, com queijo branco e melado de cana de açúcar. 


O Cavalo Alado

Eu era pequeno, muito pequeno,  aquela idade  em que começava a descobrir o mundo. As novidades com imagens fortes e coloridas me impressionavam profundamente. E ali, perto da cozinha da casa, encontrei uma lata quadrada com a imagem de um cavalo vermelho com asas. Meu pai tinha um cavalo e me levava a passear, sentado na sua frente. Quando o animal se movimentava dando uns passos,  eu me sentia inseguro e assustado. Mas um cavalo com asas? E ainda vermelho? Seria um tipo de dragão,  que eu conhecia de um quadro de São Jorge, que estava pendurado na sala? Introvertido e tímido não tive coragem de perguntar para a mama  que tipo de animal era aquele. Mas que eu estava curioso, isto estava.

Só muitos anos mais tarde, quando comecei a ler sobre a mitologia grega, é que obtive a resposta: aquele cavalo alado era o Pégaso, símbolo da marca de querosene Mobiloil.

Uma pequena jóia

Foi também nesse tempo que ganhei uma pequena chave, daquelas que vinham soldadas em latas de conserva. Para abrir, bastava girar a chave. A segunda guerra mundial  havia acabado há pouco tempo, e por cá acabaram chegando muitas coisas diferentes. Sobras da guerra.  Não sei quem me deu a chave, mas eu a considerava uma coisinha especial, pois era diferente .

Meu pai estava derrubando uma área de floresta virgem perto do tanque, para fazer uma roça. Depois que derrubaram as árvores fui até lá brincar. Árvores enormes de canela, peroba  e outras estavam tombadas umas sobre as outras. Um local incrível para uma criança folgar. Entre subir e descer aqueles troncos e galhos, de repente, minha chave escapuliu-me da mão e foi cair no meio daquele amontoado de ramos e folhas. Fiz de tudo, procurei, virei, mexi e nada. Certamente era mais fácil achar uma agulha num palheiro.

Abateu-me uma profunda tristeza. Havia perdido minha pequena jóia. 


Animais Selvagens

Naquela época eram raros os animais selvagens. A caça intensa quase os exterminara. Der Papa gostava de contar histórias sobre as caçadas que fez quando jovem, principalmente a caça ao veado. Este depois de descoberto e perseguido pelo cão,era abatido na corrida - e aí entrava a qualidade da munição, da arma e do caçador. Ele era um exímio atirador. O sebo do veado era guardado para finalidades medicinais.

Lembro que, certa vez, apareceu um bugio lá pras bandas do Campo. Seu ronco deixou todos de casa excitados. Muitos vizinhos o perseguiram, mas não sei se conseguiram matá-lo. Depois fui saber que o bugio é um tipo de macaco.

Conhecíamos mais os animais por revistas e livros do que pessoalmente. Havia a raposa, o lobo, o tigre e o leão. Mas isto eram histórias.

Diziam que no mato do sítio havia gambá, mão-pelada, guaxinim (graxaim, dizíamos nós), tatu, quati, gato-do-mato, ouriço, tamanduá, paca e cotia. Eu não sabia que mão-pelada e guaxinim eram o mesmo animal.

Num final de tarde, - eu deveria ter uns sete anos - die Mama pediu-me para ver onde estava um bezerro que se havia embrenhado no mato e trazê-lo de volta para o pasto. Fui, despreocupadamente, por um caminho dentro do mato por cima do morro, perto de casa. De repente, na minha frente, o bicho saltou do mato para dentro do caminho. Em pé nas patas traseiras, arreganhou os dentes, soltando uivos. Era muito maior do que eu.

Até hoje não sei bem se foram os uivos do bicho, os meus gritos de susto ou ambos que soaram pelo mato. Nunca corri tanto na minha vida. Nossa! Passei por uma!

Depois me disseram que provavelmente foi um guaxinim. Diz a enciclopédia que ele tem até 60 cm de comprimento e mais 40 cm para a cauda e pesa até 20 kg. Mão-pelada ou guaxinim parece estar de óculos escuros. Às vezes, assemelha-se a um ursinho, um mico, um esquilo ou um rato mas, não é nada disso.

É, este foi o monstro que quase me matou de susto.

O Natal

O Natal era a maior festa do ano. A cigarra anunciava a sua chegada. No início com um canto meio rouco, mas que se tornava límpido e melodioso depois de alguns dias de ensaio.

Não se falava em Papai Noel, nome desconhecido na época, mas em Chrestkindcha (Menino Jesus). Heilige Niklós (São Nicolau), hoje conhecido como Papai Noel, tinha o seu dia - 06 de dezembro - que não era festejado, mas os filhos homens que nasciam neste dia, geralmente levavam o seu nome.

Die Mama passava os dias anteriores fazendo doces de diversos tipos enfeitados com açúcar colorido, junto com bolos de diversos tamanhos e fórmulas. Os santa-fés e os pães-de-ló tinham um destaque especial. Eu, o filho mais velho era convocado para auxiliá-la.

No dia 24, no final da tarde, chegava uma pessoa, cuja identidade as crianças desconheciam, com os presentes. No caso, era a minha tia, que vinha de longe em direção ao sítio, coberta com um véu que ela usava na missa.

Nós crianças éramos mantidas ajoelhadas e de cabeça baixa, enquanto se processava a entrega dos presentes. Assim como chegava, partia a misteriosa figura que os trouxera. Depois de alguns minutos aparecia a tia Maria querendo saber o que havíamos ganho. Era uma grande festa. Os presentes eram bem simples comprados no comércio da Freguesia.

O auge da comemoração acontecia na missa da meia noite (entre o dia 24 e o dia 25). Saíamos de casa entre 9 e dez horas da noite, e caminhávamos à pé, aproximadamente cinco quilômetros, até a Igreja Matriz. Se fosse noite de lua e sem nuvens melhor, mas de qualquer forma, geralmente andávamos pela estrada de barro iluminada pelo céu azul e pelas estrelas.

A Freguesia e a igreja tinham uma precária iluminação elétrica. Quase todas as famílias da Colônia se faziam representar nesta missa de natal, que dividia com a Páscoa o ponto máximo da liturgia católica. O presépio enfeitado e iluminado onde a manjedoura com o menino Jesus e um jovem pinheiro de araucária cheio de penduricalhos eram a maior atração.

O Coral da igreja esmerava-se em canções natalinas tradicionais. A missa era em latim e as pregações do padre em português, pois proibido estava o idioma alemão em atos públicos.

No dia 25 brincávamos, almoçávamos e comíamos bolos e doces. Era uma festa essencialmente familiar.

Tempestade

A propriedade fica num pequeno vale estendendo-se na direção norte e nordeste. A entrada do vale fica a sudoeste. O ventos predominantes são o nordeste, que se manifesta como uma suave brisa e o sul, que é percebido pela movimentação da copa das árvores das partes mais altas. As trovoadas com ventos fortes e que geralmente são acompanhadas de granizo, vêm de sudoeste.

Quando com chuva forte, o vento começava a zunir e a porta principal da casa (grande) ameaçava ceder, nós nos colocávamos a escorá-la com as mãos, e die Mama corria a colocar a queimar no fogão a lenha, folhas secas de palmito que haviam sido bentas na procissão de Corpus Christi. Santa Bárbara era invocada. Algumas telhas o vento arrancava ou mudava de posição, mas quando era muito forte, árvores eram derrubadas.

A maior tempestade de que tenho lembrança aconteceu quando morávamos na casa menor. Eu deveria ter aproximadamente três anos. A casa não tinha forro e, de repente, olhando para cima, vi somente o branco da chuva e do vento.

O telhado havia sido arrancado. Die Mama pegou-me pela barriga e, junto com a minha irmã Hilda, colocou-nos debaixo da cama do casal. Papai estava no engenho que em parte foi destelhado. Disse-nos depois que uma pedra, que com o seu peso servia para firmar as telhas, havia caído próximo a seus pés, quase o matando.

Depois da tempestade restavam o granizo espalhado pelo pasto e as árvores tombadas.

O Monjolo e a Roda d'Água

Na escola do Campo, O Monjolo e a Roda d'Água era o primeiro texto do livro de leituras do segundo ano primário - se não me falha a memória. Não me lembro de detalhes do texto, mas havia uma ilustração da roda d'água. Roda d'água todos nós conhecíamos, pois havia uma no nosso engenho. Mas o que era o monjolo? Perguntar ao professor era complicado, pois eu era muito tímido e o meu português fraquíssimo. Já caçoavam de mim porque na fala trocava o p pelo b, o t pelo d. Imaginem então, eu nem saber o que era um monjolo! Não sei se perguntei pra mama. Se perguntei ela também não sabia, ou deu uma resposta pouco convincente, pois até ontem eu não sabia o que era este artefato.

Em época de Internet, temos respostas para quase todas as nossas dúvidas. Basta pesquisar pelo google.

E aí está crianças da escola do Campo de Demonstração, do ano da graça de nosso Senhor Jesus Cristo de 1955, e demais interessados:


Monjolo é um pilão grande - onde se soca milho, arroz, café ou amendoim - com um socador formado por uma haste de madeira na frente e um cocho na parte traseira. A água movimenta o socador. Ela chega através de uma calha, cai no cocho e quando este fica cheio abaixa com o peso da água elevando a haste. Assim que a água escorre a haste desce pesadamente, socando o que esteja no pilão.

Dizem que o monjolo veio da China. Mas ele foi introduzido no Brasil pelos portugueses.

Caí no riacho

Morávamos numa pequena casa de alvenaria no sítio dos meus avós.

Próximo passava um fio de água que se perdia no meio da vegetação rasteira. Duas a três tábuas formavam uma passagem sobre a água. Junto estava o cocho de lavar roupas abastecido, através de uma calha de palmito, por uma fonte que brotava na base do morro em frente.

O banho de corpo inteiro não era recomendado. Havia restrições religiosas. Tomar banho de rio não era um costume aceitável, considerando principalmente, a possibilidade de afogamento. As crianças, portanto, deveriam ficar afastadas da água.

Eu sou nascido escorpião e a água é o meu elemento básico. A atração que a água exerce sobre mim é muito forte. Eu deveria ter uns dois anos de idade, quando fui brincar perto do cocho. E caí no riacho... Não me lembro de ter feito algum escândalo, mas papai apareceu rápido e agitado, e lógico, levei umas boas palmadas.

Depois de quase sessenta anos sonhei:

Estou começando a caminhar. A visão que tenho da água de uma pequena represa é magnífica, estou quase no nível da água, sou muito pequeno. Eu sinto a água - o quadro é de cores fortes - há um cheiro muito agradável, caminho cambaleando sobre uma armação de tábuas que formam um pequeno trapiche. A imagem do ambiente é maravilhosa. 

A Primeira Aventura

Mamãe sempre ajudava meu pai nas lides do sítio. Ela contava que certa vez, o filho mais velho, ainda bebê, foi levado junto, dentro de um balaio, para a limpeza do pasto. Eles concentrados no trabalho, quando perceberam ... Céus! Um boi curioso foi cheirar o balaio e nele engatou um chifre. Depois de dar alguns passos o balaio virou, despejando o Romeu com os seus panos. Que susto!